"Paragem do Machimbombo"
Republicação de conto escrito para este blogue no ano 2011
"Paragem do Machimbombo"
Ele fez tudo direitinho, como nem nos outros dias, porque não havia dia nenhum igual na parecença que eles têm.
Tomou o banho querendo acordar a oportunidade de se lavar de pensamentos que há muito o acompanhavam.
Os pingos do chuveiro em sua cabeça, eram mais ruidosos do que os pensamentos e assim os tentava anular, ali se deixando permanecer...
- Em vão!
Era como lavar nódoas negras na alma, quanto muito refrescava a sua solidão.O café coado ainda agora, deixava no ar o cheiro de que se fica saudoso, porque é viciante ao antecipar os reflexos conhecidos da sua ingestão.
Inspirou as ondas desse perfume que o transportava no tempo, até à loja do Capomba, lá em São Filipe de Benguela. O aroma tinha o feito de no começo da rua, ser como uma seta indicadora do local onde se vendia aquele ouro preto de misturas ricas, com origem na Gabela.
Entre pensamentos, saboreou gole a gole seu café e desagradou-se, quando chegou ao fundo da caneca e viu espelhada a sua expressão desfigurada, ainda assim preferindo essa imagem turva, àquela que evitava ver em qualquer espelho e não correspondia a alguém que ele conhecesse.
Passou pela esplanada em direcção à paragem do machimbombo e acenou para os conhecidos de o verem todos os dias e para quem nunca balbuciou qualquer som, brindando-os com um trejeito, um aceno gestual, a quem nem sempre lhe dava devido retorno.
Haviam os que se questionavam da sua normalidade e não se pode dar largas àqueles que porventura, possam andar com os pés na calçada que eles próprios pisam, mas fazendo-o de uma forma um pouco estranha aos seus hábitos padronizados.
Ele só poderia ter um qualquer problema.
Porque as pessoas não têm questões. As questões viram inevitavelmente problemas.
Porque as pessoas não têm questões. As questões viram inevitavelmente problemas.
Nunca alguém soube como era seu timbre de voz e já ali passava diariamente há longos anos, repetidamente à mesma hora, fizesse sol ou chuva, nos dias que para aqueles eram os úteis e também em todos os outros dias, que para si há muito se construíam desde o acordar, ao seu final, sem interesse algum ou utilidade, apesar de procurar inverter a situação.
Esperava. Assim parecia, no ponto!
À paragem de um, atrás de outro machimbombo (BUS), os utentes saiam, outros entravam e ele ficava de olhar perdido e nem notava a estranheza dos condutores e de alguns rotineiros passageiros, que já deveriam estar habituados, mas não conseguiam, e achavam aquela atitude esquisita, não percebendo a intenção do sujeito.
Ele nunca entrava no machimbombo!
Tudo o que de estranho é, ao tornar-se vulgar, perde a estranheza inicial. No caso não era assim.
Esperavam pela surpresa, a inevitabilidade de um dia ele galgar os degraus entrar no machimbombo, dissesse para onde iria e por consequência aquela coisa estranha que apreciavam diariamente e que até incomodava se resolvesse de vez, porque as pessoas não tendo nessa hora muito mais com que se preocupar, pensam sobre os outros, para não terem de pensar nas suas vidas vazias, cheias também de automatismos.
Os passageiros chegavam à paragem e ele prestava-lhes na fila o seu lugar, passando sempre para o último e todos agradeciam a gentileza, mesmo aqueles que todos os dias a recebiam.
Por um lado questionando-se do porquê da atitude, por outro, felizes por assim arranjarem um lugar sentado e confortável para o trajecto de suas curtas viagens.
.........../..........
Mais um dia igual só nas parecenças dos outros, porque invariavelmente não são iguais e fez tudo como sempre, sem trocar as prioridades, mas sem pressas.
Não tinha dormido bem e deixou-se ficar um pouco mais na cama.
A paragem e os machimbombos, assim como aquela gente que nada sabe de si, mas tudo quer saber dos outros e se aplacava na esplanada como se na sua sala de estar estivessem, vivendo o que não é deles como numa tela gigante, estariam como sempre esperando a sua passagem rotineira.
Saiu do seu prédio maquinalmente fazendo o trajecto habitual, mas ao virar da esquina o quadro que vislumbrou, deixou-o atónito.
A esplanada já não existia, ou por outra, tinha sido varrida, deslocada e desfeita.
O poste e bandeira que o qualificavam como paragem e respectiva cobertura, também não existia e no seu lugar, o machimbombo ocupava aquele trecho da rua, atravessado em cima do passeio e com o nariz enfiado onde não tinha sido chamado.
Descontrolado na trajectória, o machimbombo tinha levado tudo quanto encontrou pela frente. Esplanada, paragem e cobertura e ainda entrou por dentro da montra da loja em frente de onde todos os dias,
ele... como se esperasse pelo transporte, fazia olhinhos à garota do balcão.
Vendo que ela estava sã e salva, pensou:
(Enquanto as obras se fizerem e a loja não reabrir, assim como a paragem do machimbombo não for recomposta...)
Como farei para a ver?
Imagem: da net / desconheço a fonte
Palavras: Guma
Palavras: Guma
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Comentários
A vida é por vezes fértil em estranhas ironias:deixou ele de ter pretexto para continuar a olhar a mulher que tanto o atraía,possivelmente a sua razão para viver, mas como recompensa conservou a vida - e tudo isto só porque não acordou mais cedo, como supostamente devia ...
Está muito bem construído este "estranho" personagem; gostei muito de ler.
Abraço amigo; boa semana!
Vitor
"À noite quando olhares o céu, repara na estrela mais brilhante.
Essa És TU!
O resto do Universo, é o carinho que sinto por ti."
Sou tua fã mesmo, isso é lindo!
Beijosssss
E o final, rsrs...
Esse final surpreendente, me fez voltar à leitura pra ver se descobria alguma pista da garota antes, pois imaginei tantos final na primeira leitura...
Simplesmente amei sua bela e criativa construção!
Aplausos!!!
Deixo carinhos mil pra ti, viu?
Beijos
Um olhar a cumprir a sua andança costumeira, expectante, compondo em configuração rotineira como lhe convém, entremente automático em pontos fixos, os da lembrança.
E o agora diante da mudança de paisagem, o instante remetido ao ontem, na espera talvez do que não se sabia...
Na lembrança o foco, o detalhe aquela, a menina do balcão, que mesmo sem saber, se fazia companheira ao passageiro do tempo...
Lindo, lindo, lindo...
Não tem como não vivenciar cada detalhe de tuas divagações...
Feliz semana aos encantos pensador...
Kandandos e kandandos
Bjs
Livinha
Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse, ela tinha
um sorriso luminoso tão triste tão gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista
nas acácias floridas, na fímbria do mar
Sua pele macia era sumauma
sua pele macia, cheirando a rosas
seus seios laranja, laranja do Loje
eu mandei-lhe essa carta
e ela não disse que não
Mandei-lhe um cartão
que o amigo maninho tipografou
“por ti sofre o meu coração”
num canto “sim”, noutro canto “não”
e ela o canto do “não” dobrou
Mandei-lhe um recado pela Zefa do sete
pedindo e rogando de joelhos na chão
pela Senhora do Cabo, pela Sta Efigénia
me desse a ventura do seu namoro
e ela disse que não
Mandei à Vó Xica, quimbanda da fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço bem forte e seguro
e dele nascesse um amor como o meu
e o feitiço falhou
Andei barbado, sujo e descalço
como um monangamba procuraram por mim
não viu, não viu, não viu o Benjamim
e perdido me deram no morro da Samba
Para me distrair levaram-me ao baile
do Sr. Januário, mas ela lá estava
num canto a rir, contando o meu caso
às moças mais lindas do bairro operário
Tocaram a rumba e dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu
e a malta gritou: “Aí Benjamim!”
Olheia nos olhos, sorriu para mim
pedi-lhe um beijo, la la la la la
e ela disse que sim
e ela disse que sim
(Sérgio Godinho)
Ele era como era. Um enigma.
Vivia num tempo, o dele.
Ela fazia parte desse tempo dele.
Ele era ele, só. Mas acompanhado pelo destino na imagem dela.
Um belo conto. Uma estória que me prendeu.
Uma assinatura - Kimbanda. Parabéns!
Beijo
Texto *****.
Abraço.
Bjs.
Por mim ... são apenas sequências de factos a que atribuímos ligação a posteriori.
Não vou falar do magnifico trecho que ai nos deixa.
Hoje vim só dizer que estou feliz. É estranho, mas vai-me desculpar.
Beijocas amigas.
Graça
O meu "machimbombo"também se despistou! Fiquei em terra!....
Aqui estou a ler tudo o que estava em atraso e tenho que dizer que é muito bom voltar aqui (assim como a outros blogs amigos)e encontrar as tuas histórias,as tuas poesias,o calor da tua AMIZADE.
Obrigada AMIGO
Beijinhos
HELENA
Para a ver, talvez ela vá trabalhar para outra loja... ou então, pode resolver, de vez, o problema... já tem assunto para meter conversa com a pequena ;)
Bjos
Sôdades, doces, docê.
Beijuuss, feiticeiro amado, n.a. do lado de cá do Atlântico
Trabalhava na praça dos Lusíadas ou Maria da Fonte em Luanda, comecei a ver um rapaz que ia no mesmo machimbombo que eu e começava a andar mal eu saía do trabalho na CABIE AN. Um dia acercou-se e perguntou-me as horas, mostrei meu relógio, o moço todos os dias ia no meu machimbombo e saía na minha paragem, eu ia para casa e ia dar um beijo à mãe que normalmente estava na varanda à minha espera, avisto-o dali (morava num primeiro andar) na paragem em frente á espera do autocarro para ir de novo para cima. Um dia ganhou coragem e acercou-se, disse que sabia tudo de mim que o pai dele era amigo dos meus patrões!...sabia que não ouvia etc...e se queria namorar com ele...minha nossa, e eu sem desconfiar de nada, assim; quando falas em machimbombos lá me vem há imagem o Zé... que mesmo depois de eu abandonar Luanda, uma grande amiga disse-me aqui quando vim cá de férias (ela sabia da história) que ele continuava na paragem todos os dias à minha espera!... mas que mázinha eu fui em não o avisar...e nos dias que fazia serão (contabilidade) ele não arredava pé da empresa, esperava pacientemente lá na frente... que será feito dele?
Um beijinho da nina lá do Bairro. laura
Há dias em que temos que deixar o destino tomar conta das nossas vidas.
Adorei a história que me prendeu do princípio ao fim.
Beijinhos
Gostei da estória.
Um abraço
Adorei seguir todo o percurso do machimbombo (é assim que se diz?)e aquele final que surpreende pela mensagem de esperança que nos deixa.
Quero dizer-lhe que as palavras que me deixou foram do melhor que recebi.
Obrigado
O amor tem destas coisas, que nem nós próprios sabemos porque fazemos determinadas coisas...adorei a história.
E...lembrei-me como era andar de machimbombo com o calor infernal de Luanda.
Deixo um beijinho com carinho
Sonhadora
Como sempre, lindas tuas escritas, teu pensar, tua alma.
Parabéns!
Meu amigo, desejo-te uma semana proveitosa de muita paz e amor.
Bjos mil...
seguramente que a urgência do querer te vai trazer de volta rapidamente a menina do balcão e lembrei de um poema de Eugénio para que estejas de sobreaviso quando a reencontrares :)
Canção
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei meu coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?
em "as mãos e os frutos"
:)) beijinho Kimbanda
Kandandos e mungoê!
As pessoas repetem-se nos dias que nunca são iguais, pelas paragens em rua diferentes.
Esta viagem foi uma surpresa do início até à paragem final.
Agradeço a visita e o simpático comentário. Foi um regresso ao passado cá.... e lá....
O que não se faz por amor!!!
Lindo demais este seu conto.
Admiro muitíssimo a forma como escreve e principalmente o sentimento, a sensibilidade que está sempre presente.
Parabéns.
Beijinhos
Ná
Vim apenas apanhar o machimbombo contigo, saímos lá na ponta da Ilha, podemos ir à cubata beber um cafézinho bem gostoso, depois podemos correr pelo areal com um pau enterrado na arei a fazer fósforo, era o que fazia sempre que ia com a Luisa, o Rui, a Any e a Licinha mai'lo Carlitos e o João, minha nossa, que tempos lindos aqueles.
Ao bater da meia noite tinha de estar em casa e o pai sempre a olhar o relógio se já passassem cinco minutos, mas que importavam os ralhos se ao outro dia voltavamos a repetir a façanha?...
Apertadinho kandando, anda daí amigo, vamos ver o marrrrrrrrrrrrrrrrr.
laura
vim lhe deixar um afetuoso abraço e meu carinho, viu?
Beijos
Ele até podia tirar-lhe uma fotografia, fingindo que fotografava o machimbombo e assim tê-la mais perto dele.
Em Lourenço Marques, a primeira vez que vi a minha mulher foi quando ela descia dum... machimbombo.
Kanimambo, com um forte kandando, amigo,
Jorge
Vejo que continua ausente;espero que tudo esteja bem consigo.
Um abraço amigo; cá ficamos à espera...
Vitor
Apertadinho kandando.
laura
Apanha lá outro machimbombo e volta depressa. Estamos todos ansiosos e saudosos à tua espera.
Olha que a minha loja vai reabrir em breve e quero-te cá para a inauguração.
Beijinhos e kandandos amigos.
Janita
Interessante, continue...
Parabéns pelo texto
Uma boa semana.
beijooo.
Não vou dizer nada, basta-me ler e ficar a pensar no que poderá estar para além do que ficou escrito,
Agora, as mensagens. que me deixa no meu modesto espaço são obras de arte.
São como abraços que, ás vezes, tanta falta me fazem.
Obrigado amigo!
Beijos,
Débora.
Que lindas tuas palavras no meu blog.
É sempre uma alegria te ler por lá.
Obrigada pelo carinho e um belo final de semana pra ti.
Abraço!
Ah... tem que ter continuação ou ficarei aqui, em cólicas, a imaginar o final... ou seria o começo de uma nova história?
Adorei, meu amigo. Escreves maravilhosamente.
Beijokas.
Beijinhos de luz e tenha um lindo fim de semana , e deixe lá o dedo do judeu ele que faça o que quiser com ele...
Estou de novo a identificar-me com desenho do blogue e arrumá-lo o melhor possível. A Google retirou muitas das possibilidades que nos davam de redesenhar o template dos blogues, agora trabalham* debaixo de programação HTLM5 e já não suportam a programação Flash por questões de segurança.
Reparo também que alguns dos blogues que seguia estão carregados de virus. felizmente tenho defesas eheheh e tudo corre bem.
.
Uma viagem com algum humor ao ano de 2011 para entreter rsss - e que me faz feliz teres gostado de ler.
Grato pela tua visita e deixo o desejo de um dia repleto de coisas boas.
Kandando