"Jo e Segunda"

 Ele chegou com o sol nascendo numa segunda-feira à casa que o aguardava, na cidade do Lubango, no velho bairro da Lage, prédio encostado à padaria do "Arnaldo Fernandes", donde o cheiro do pão acabado de sair dos fornos chegava com vigor à rua, num convite para matar a fome, o que lhe sobrou na memória para sempre.


Lingrinhas, mas espevitado, deveria ter uns sete ou oito anos.
Quem o "deu" aos velhotes não sei, nem sei se seria essa a idade dele.

Iria ser afilhado / criado, a mistura das duas coisas, ou uma a encobrir a outra, que muita gente como ele sentiu na pele.

Que interessava ao velhotes o nome esquisito que ele trazia Tchacuvuco, se podia passar a chamar-se simplesmente Segunda, como o dia em que ele chegou e encantou.
E assim o batizaram como a branco nenhum chamariam.

O Segunda e um menino vizinho, o Jo, brincavam pouco, por razões diversas, mas quando o podiam fazer, era de pé descalço.
Segunda não tinha sapato, chinelo ou sandália, arrastava os pés no chão, o menino branco tinha sandálias, mas para brincar de bola, tinha de as tirar para não estragar as únicas que tinha e sabe-se lá até quando. Para eles não tinha pico que se entranhasse nos calejados pés de palmilhar pelos carreiros que iriam dar a um lugar qualquer, desde que fosse o mundo da sua amizade, a preto e branco.

O menino Jo, todo ele brio com as suas sandálias de sola gasta, que engraxadas de cebo e a brilhar, até pareciam novas para serem usadas exclusivamente para ir à escola. Para os domingos e dias especiais ele usava uns sapatos lindamente engraxados de preto, brilhando, as solas estavam rotas, mas ele colocava umas palmilhas recortadas de plástico, para não sentir o chão.

O Segunda só brincava depois de limpar a casa e cumprir os recados que lhe mandavam fazer.
Ele não ia à escola, nem sabia no que isso serviria para melhorar o mundo dele.
Trabalhava muito, brincava pouco... A bem dizer nunca foi menino.
Sentia-se ainda assim na sua humildade, uma criança bafejada pela sorte e não passava fome de barriga, apenas da escola que não podia frequentar. A mesa da cozinha era onde comia sozinho, mas vá que não vá, ele comia do mesmo que seus senhores "padrinhos" comiam na sala de jantar, para ele e sua condição, era um luxo, mal comparado com a vida que tinha antes. O tempo lhe diria como ao o retirarem de seu meio e cultura ancestral, lhe estavam a roubar a essência.

Já o menino ia à escola sim, mas muitas das vezes de barriga vazia.
Por vezes, empoleirava-se no muro do vizinho, subtraía duas ou três folhas do limoeiro e fazia chá, sem o açúcar que adoça a boca de qualquer criança, enganando a fome, como podia.
Pelo carreiro que encurtava tempo até à escola, apanhava goiabas, com sorte uma ou outra manga e quantas vezes tinha de fugir correndo para não ser apanhado pelos donos das chitacas.

O pai do menino Jo pela manhã, cumpria o ritual, deixando uma moeda de dois e quinhentos em cima da mesa como fossem os últimos e deles o menino fizesse o que a imaginação conseguisse para enfrentar a fome ao almoço e ao jantar.
Ele sabia que no fundo do outro bolso, seu pai tinha mais uns trocos, para comprar caricocos e matar a fome dos pulmões, coisas importantes de gente grande, que não dá conta das prioridades, na cabeça deles tem fumo a mais e discernimento a menos.

Descobriu o Jo que pouco mais compraria, que um pequeno saco de fubá para fazer pirão com esses dois e quinhentos. Pirão sem mais nada, era difícil de tragar e conduto não havia, mas o amigo Segunda tinha o saber da vida e muito para ensinar a Jo.

O Segunda, conseguia reconhecer no meio do mato umas folhas verdes, tenras e saborosas a que chamava lombi. Os dois apanhavam-nas e o Jo cozinhava-as, para fazer um espécie de esparregado.
Não tinha sal, gordura ou outra forma de tempero, a imaginação comporia essa falta no paladar. Passou a ter um prato único no seu dia a dia, poucos nutrientes a ajudar no seu desenvolvimento, mas de fome não morreria.
Sobrando algum pirão, cortava-o em fatias e iria fritá-lo na chapa ao mata-bicho, como se fosse pão torrado, pois de pão só o cheiro que exalava da padaria quando por lá passava.
Cada um deles à sua maneira, vivia sobrevivendo e os anos mais importantes da infância eram passados apesar das dificuldades, com alegria quando estavam e brincavam juntos.

Num desses dias que parecia nunca mais acabar, o menino soube que o pai não voltaria mais a casa para deixar os dois e quinhentos habituais.
Para o conduto o Jo aprendeu como fazer com o amigo Segunda, mas arranjar dinheiro para a farinha de milho e fazer o pirão, ele não tinha como.

Até que na escola surgiu um nicho de oportunidade que até aí não se lembrara de explorar. Os garotos que os pais viviam com melhores posses, tinham miniaturas de carrinhos com que faziam corridas em pistas rasgadas na terra batida.
Os carros iam-se deteriorando na pintura e o menino lembrou-se das muitas latas com restos de tinta, que havia lá por casa onde o pai guardava ferramentas, pinceis etc., e propôs-se a pintar os carros dos seus colegas.
Lixava-os e pintava-os dando-lhes um novo brilho para orgulho de seus donos.



Ele o Segunda aprenderam cedo e da pior maneira, o que é isso da classes sociais.

O negócio resultou bem e houve até quem lhe começasse a pedir faixas desportivas, números e outras decorações nos carrinhos de "Corsitoys" brinquedo que não era para todos. Jo nunca iria ter nenhum desses carrinhos caros, mas com os arranjos que fazia neles, deleitava-se brincando antes de os entregar reparados e pintados.

Jo, agora com 10 anos, tinha um "negócio" e podia comprar fubá, sal, açúcar, pão escuro, fruta e outros condimentos, que o Segunda, de quando em vez, já lhe tinha dado a provar trazendo à socapa da casa dos velhotes para os dois degustarem, escondidos do mundo, à beira do riacho que testemunhava os sonhos e brincadeiras de ambos.

E como o tempo passa...
Um depois do outro, os "padrinhos" do Segunda morreram, e ele assim como chegou, sem mais, partiu numa segunda-feira que também não escolheu, apenas com a roupa que tinha no corpo.
Desta feita ia calçado com umas loacas que com sua habilidade fez a partir da borracha duns pneus.
Seguiu o caminho da Senhora do Monte, foi ficando mais pequeno, cada vez mais pequeno, até que o Jo o deixou de ver.
Não se tinham despedido, assim foi, como se daí a pouco se voltassem a ver.

Dele, o Jo mais nada soube e, vice-versa.

Os dois, fizeram-se à vida por azinhagas diferentes.

O Segunda teve desde muito novo "ferramentas" para vencer as vicissitudes da vida.
Com certeza recuperou seu nome 
Tchacuvuco com o orgulho merecido de um Mumuíla
Era amigo de seu amigo, puro e criativo. Deveria "safar-se bem", era pelo menos o que pensava o Jo.

O Jo fez-se temporariamente na profissão de pintor de automóveis... que lhe deu o jeito para outras pinturas da vida e ao longo dos anos terminou o seu curso de engenharia, estudando e trabalhando para o concretizar.




Amizades p'ra vida

Conto baseado na vida real, adaptado por: 
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 autor 📝📸 : Guma © 2009 / 2023 

Imagens: retiradas do Google - Desconheço a autoria das mesmas

Comentários

São disse…
Ai, como o teu texto fala de realidades duras que, felizmente, não conheci a fundo em pessoa, mas conheci de outra maneira ...

O que mais lamento é que estas vidas que a ninguém importam ainda pululam por esse mundo cada vez mais desigual.

Continuo gostando da tua escrita.

Grande abraço, meu caro amigo .
Guma disse…
Infelizmente, querida amiga e, nem nos apercebemos do quanto, pois há imensa miséria escondida por vergonha.
Reformas e pensões de miséria também, pelo que está a tocar às crianças é aos mais idosos. Uma vergonha quando os políticos vêm à praça pública dizer que nos estamos aproximando do resto da europa.
Grato por tua presença, leitura e pelo comentário que abraça.
Kandandos e beijinho com amizade e estima.
chica disse…
Puxa,Guma! Que lindo conto e emocionante relato nele...
As diferenças das vidas e nas vidas tão lindamente descritas! Mas apesar de tantas vicissitudes, a amizade nunca será esquecida... Adorei! abraços, chica
Jaime Portela disse…
Uma história bem realista.
Que poderia ser o início de um romance.
Gostei de ler, pelo conteúdo e pela boa narrativa.
Continuação de boa semana, caro Guma.
Um abraço.
Guma disse…
Caro Jaime, boa tarde!
É com alegria que agradeço sua visita aqui na "Serra..." assim como seu comentário.
Para pequenos contos, alguma condensada ficção, divagação e até a poesia, vou encontrando tempo de qualidade, mas algo mais elaborado por hora não tenho conseguido tempo útil, que o digam* os dois romances que estão a demorar anos a vir à tona. Quem sabe um dia publique no formato E-book para que todos tenham acesso.
Deixo meu kandando com estima e amizade.
Guma disse…
Amiga Chica, que bom recebê-la aqui na "Serra..." e ler seu comentário tão agradável.
Esta é uma estória que infelizmente ainda grassa por todo o planeta nos dias de hoje.
Muita criança carenciada do que considero básico para um crescimento saudável.
Neste minimal-conto abordo inclusive a dificuldade de inserção do menino Segunda, que ao nascer com um tom de pele mais escuro, não teve as mesmas condições que o pobre do menino branco Jo. Triste verificar que tudo isto vai acontecendo hoje em dia, embora de forma mais sofisticada.
Deixo meu kandando com amizade e estima.
Fá menor disse…
Gostei muito de ler esta estória muito bem contada. Realidades de vida dura, superação e amizade que fica no coração para além do tempo e ausência.

Beijinhos

Guma disse…
Feliz por ter sido do agrado da Fá, agradeço a visita e o cordial comentário, deixando um kandando e beijinho!

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