entrementes (erva doce)



autor: Guma 

Acrílico sobre tela canvas 100 x 70 cm - indisponível

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" entrementes " (erva.doce)

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diz*se dele, que nada dele se sabia.

de onde veio, como se chamava e ainda aconteceu de lhe darem um nome, melhor, vários!!!

não tinha idade, ou tinha muitas, todas as que cada um imaginava. e estando permanentemente na dele, envolvido, o alcunharam de "entrementes".

ficava por norma um pouco distante dos restantes retalhando o que ouvia a partir do que pescava* - solto das conversas de quem se sentava à sombra da soberba mangueira do terreiro, que pintava do vermelho pó, os pés descalços de quem a vida pisava, porque pisar a vida no seu paço, ainda era um sonho, naquelas bandas.

o puzzle batia certo para ele mesmo, mesmo sem sem o encaixar das peças e assim lhe passavam os dias, cada um como uma reza... 

a certa altura, num dia de canícula insuportável, sentei-me perto da eira junto ao terreiro, e fui-me ressentando aos poucos para mais perto dele e ouvir o que dizia repetindo no tempo, balbuciando o que eu antes não percebia ao longe, e continuava ao perto sem entender.

falava e respondia*se. e à falta de ligação entre o que manifestava e o que deveria ser entendido, ficava nas pausas que paria por dentro, ninguém alimentava esperança de entender seus pensamentos fiados na delicadeza  do seu débito, que seria quem sabe, uma língua de outros tempos, dialecto de qualquer outro lugar, ou aprendido noutro mundo, noutra galáxia e despachada por deuses que não mais o aguentaram ouvir.
na verdade ele não perturbava ninguém, mas todo o mundo se perturbava por perturbá-lo.

Olhou*me o "entrementes" de soslaio, mas não lhe vi se não um olhar longínquo que via para além de mim e de uma tranquilidade inequívoca, um rosto meigo e sereno que estudei como se o quisesse para mim.

desviou o olhar que se perdeu na savana, onde os gulungos pastavam, e retomou a conversa  de si para si, um murmúrio que se dissipava com brisa quente não chegando a lugar algum, pois que de seu mantra indecifrável, ninguém desde que ele era um candengue, alguma vez se interessou, vai-se perceber o porquê de tanto reboliço na aldeia agora que ele estava de cabeça nevada de linda, e com rugas que como os anéis das árvores ditavam sua longevidade.

de quando em vez, deixava de se ouvir, concentrava-se em talhar uns golpes na vara de pau preto como que guardando em cada traço, um pedaço da sua estória de solitária que nem por isso foi de solidão, repleta de gente numa roda dançando num ritual ao som de marimbas e berimbau, muita poeira no ar levantada aos espíritos, uma prece, mais uma por chuva que teimava em não chegar e a culpa era do louco, do "entrementes" que no meio de tanta secura aparecia mastigando erva doce verdinha, cheia de suco, da chuva que só caía na sua pequena courela, no lugar da sua cubata.

era demais... eles tinham de agir, acabar logo com aquele tormento atingindo tanta gente e causado por um homem só, que aliás nem sabiam direito se homem era ou algo que parecia ser o que não era.

os nós dos dedos batiam cadências no oco tronco, nele o sentaram sem sua permissão, como se trono legado ao louco, resultasse em acalmar os espíritos, os deuses ou o que fossem acima dos seus poderes de gente comum - talvez finalmente fossem ouvidos pelos lá de cima que andavam adormecidos... e assim foi - o prenderam de razões, riram do que nunca jamais entenderiam, beberam muita fermentação de milho, encheram as bochechas e derramaram sobre o "entrementes" borrifando-o, dançaram à sua volta até à tontura e ébrios se fez dia, e nem por isso a nuvem, a única que dava água, se espalhou e prantou por outras courelas ou nacas de terra seca gretada que um dia foram férteis e hoje eram conhecidas como o "rio seco" por onde caminhavam a encoberto da noite, as hienas com seu choro de bebés e lhes comiam à socapa as galinha de angola.
....

dizia*se que fora deixado dias e noites a fio, ali agarrado ao tronco e nunca dormiu, até que uma noite o sereno o cristalizou, desfazendo-o em minúsculas partículas levantadas do chão vermelho por um redemoinho que as levou.

..............

autor 📸📝 : Guma © 2009 / 2023


Comentários

chica disse…
Linda tela e texto!
abraços praianos, chica
Guma disse…
Querida amiga Chica, olá.
Grato pela visita aqui, sou a deixar um forte e sincero kandando desejando que tudo esteja bem contigo e os teus.
A pintura condizente com texto e ambos com o ingrediente de mistério.
Um abraço.
Guma disse…
Olá caro Luís B.N.N.
Na senda dos mistérios que jamais se resolvem 😊
Gostei de o ter por cá.
Um kandando - Bom fim de semana.
Roselia Bezerra disse…
Olá, amigo Guma!
Havia estado no posto anterior e não permitia comentários. Achei que tinha desabilitado.
Bem, li avidamente o conto.
Confesso que me identifiquei com um aspecto do tão ser:
"Na verdade ele não perturbava ninguém, mas todo o mundo se perturbava por perturbá-lo."
Oxalá, ventos não me levem só além nem tão cedo!
Ser cristalizada pelo amor é lindo. Assim vale a pena deixar um rastro na Terra.
Parabéns pelo excelente conto e tela!
Tenha dias abençoados!
Abraços fraternos de paz


Guma disse…
Olá Roselia!
Por um tempo esteve desabilitado, pois eu não sabia se podia tão cedo responder às notificações de comentário.
Eu agradeço a atenção e o comentário gentil, amigo e incentivador.
Se deixarmos um legado de amor e tolerância e tivermos de partir, pois que seja com esses e outros bons exemplos e acima de tudo que o seja sem sofrimento, pois ninguém merece.
Kandando com grande amizade e estima.
Guma

Belo texto e interessante a tela!
Bom fim-de-semana 😘
Guma disse…
Boa tarde Gracinha.
Muito agradeço a visita à Serra e o gentil comentário.
Um kandando!
Anónimo disse…
Surpreendente, pintura muito expressiva e a história da mesma é fabulosa!
Mariana Sezifredo
Obrigada!
Guma disse…
Mariana!
Feliz por ter sido um bom momento e apreciares.
O quadro representa uma festa que numa região de Angola lhe chamam Sussumo, uma espécie de carnaval com muita bebida feita à partir do milho fermentado e dezenas de batuques em que os homens se vão revezando a tocar dia e noite.
O texto 😊 enfim.... assumo que não é para quem se és use a manter uma mente aberta 😉
Um kandando com tudo de bom!

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