" trágico miado "
.
havia um homem que o povo dizia, não ter juízo.
ele morava aqui na vila, umas casas abaixo da minha.
era o sujeito mais pacífico cá da terra, tal como pude observar ao longo dos anos, e não só pacífico, como educado, cumprimentava todos com quem se cruzava, miúdos ou graúdos, embora veladamente, mas fazia-o até com deferência, outros que o olhavam com desdém nem sempre tinham a mesma educação, e isso nota-se numa vila pequena, em que quase todos se conhecem pelo menos de vista.
ele morava aqui na vila, umas casas abaixo da minha.
era o sujeito mais pacífico cá da terra, tal como pude observar ao longo dos anos, e não só pacífico, como educado, cumprimentava todos com quem se cruzava, miúdos ou graúdos, embora veladamente, mas fazia-o até com deferência, outros que o olhavam com desdém nem sempre tinham a mesma educação, e isso nota-se numa vila pequena, em que quase todos se conhecem pelo menos de vista.
- percebi que já não se pode andar solitário e nos caminhos do falar sozinho, sem ser apelidado de louco.
eu, não conhecendo sua graça, chamava-o de "o poeta" - sim - porque ele declamava a tempo inteiro, caminhando cabisbaixo e olhando as pedras polidas da calçada, só levantando a cabeça para cumprimentar quem se cruzava com ele.
_______________________
umas noites atrás - por volta da uma da manhã, em frente à minha morada, ouvi aquilo que acreditei ser um grupo de pessoas travando conversa.
passou tempo e já se ouviam os sinos da igreja a badalar as duas da madrugada.
uma hora volvida, a conversa estava no auge, e eu sem conseguir dormir, o que me fez levantar da cama e abrir a janela para ver se fazia compreender aos indivíduos, o quanto agradeceria se arranjassem um lugar mais apropriado para discutir àquela hora da madrugada.
qual o meu espanto quando me deparo com uma única pessoa, o Poeta.
falava com uns três ou quatro que saíam dentro dele vocalizados, todos como pessoas distintas.
um deles tinha um tom de voz grave e autoritário, outro argumentava sereno e paciente, e os outros em coro diziam que sim, tinha razão - razão que não percebi a quem a davam.
quando se apercebeu que eu estava a observá-lo debruçado à janela, calou-se, e na sua passada descontraída, caminhou até ao final da rua e entrou em sua casa.
dois dias sem o ver, estranhamente, e a noticia chegou-me pela vizinhança de forma atrasada.
o poeta, sempre com um cigarro na mão debitando fumo parecendo uma nuvem ambulante, o sujeito que sozinho filosofava com três ou quatro, que à vez saiam dentro de si por terem algo urgente a dizer, tinha entrado em casa naquela noite que acima descrevi, e ouvindo uns quantos gatos à luta sobre o telheiro da traseira da sua casa, passou pelo corredor apressadamente em direcção à porta de acesso ao quintal, para os espantar.
imitando os felídeos, miou, miou desalmadamente e até perder o folgo, mais que todos os gatos juntos com o intuito de os calar, sem mais, nem percebeu que era a sua última vocalização - caiu, desengonçado e completamente esgotado, no pátio que o viu e ouviu finar, era o nada em que se transformou levado pela nuvem de fumo que sempre o acompanhava.
tenho sentido sua falta, pela alegoria e porque era alma desigual que me encantava, não à vila, que essa em menos de nada já o esqueceu.
o poeta declamava, não se lhe conhece obra escrita.
pela mão dele, ironicamente apenas sobrou um bilhete escrito por sua mão, colado na porta fornecendo a contagem da leitura do contador da água...
as palavras ditas no passado, levou-as o vento, já as palavras escritas, poderiam ter sido uma espécie de legado - mas ele não tinha ninguém!
...
tenho sentido sua falta, pela alegoria e porque era alma desigual que me encantava, não à vila, que essa em menos de nada já o esqueceu.
o poeta declamava, não se lhe conhece obra escrita.
pela mão dele, ironicamente apenas sobrou um bilhete escrito por sua mão, colado na porta fornecendo a contagem da leitura do contador da água...
...
as palavras ditas no passado, levou-as o vento, já as palavras escritas, poderiam ter sido uma espécie de legado - mas ele não tinha ninguém!
.
(baseado em factos reais, ou o que um baseado pode fazer aos factos reais)
Comentários
Cada um de nós vê as estórias de vida à nossa volta de uma forma muito pessoal.
Obrigado pela presença Chica.
Bom fim de Semana, Kandando.
Gostei do texto
Meu amigo, beijinho, boa semana :)
Diria mais São, uma primeira versão ouvida dos ditos da vizinhança da rua em questão (os mais próximos), passado nem umas horas, a estória já é bem diferente na outra ponta da vila e por aí vai, até que eu me lembrei de pôr mais uns pozinhos. Hoje até já me disseram que o poeta* afinal dava pelo nome de Zé Maria e a casa está à venda e ninguém lhe pega, está azarada 😊😉
Beijinho São 😘 . Bom domingo!